sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Marante


Garçon


António Luís Cortez Marante, nascido em 1948, foi jogador profissional do GD Salgueiros em meados dos anos 60. Contudo, celebrizou-se como músico da banda Diapasão (autora de grandes sucessos da música popular portuguesa como "A Bela Portuguesa") e lançou-se, a solo, em 1989.

Nos anos 90, Marante decide fazer um cover de uma canção chamada "Garçon", uma balada apaixonada, original de Reginaldo Rossi, artista brasileiro, intitulado "Rei do Brega".

O videoclip foi lançado em 1999 e, segundo breve pesquisa, tentou seguir a linha do original. Ora cliquem lá no link e vamos a isto...

Tudo começa num bar que, não fosse o look sofisticado das senhoras que o frequentam, teria todo o ar de casa de alterne. Não pretendo que o leitor inicie a visualização do clip já cheio de preconceitos - ainda só passaram meia dúzia de segundos e o senhor ainda mal abriu a boca. Porém, é impossível não questionarmos, pelo menos, a decoração retro do espaço, uma vez que, recordo, já estávamos em 1999, com a viragem do milénio à porta e os Santamaria já faziam videoclips cheios de efeitos especiais, com meteoritos a rasarem-lhes as cabeças.

Ora partindo até do pressuposto que o nosso Marante quis mesmo dar um certo estilo old school ao seu teledisco, estão criadas as condições perfeitas para uma canção que começa da seguinte forma:  

"Garçon, nessa mesa de bar/ você já cansou de escutar/ centenas de casos de amor"
Enquanto canta estes versos vemos o Marante, bem sentado e aprumado, de camisa preta impecavelmente engomada. O garçon - ou empregado de mesa, como quiserem - serve-lhe um JB sem gelo com uma postura irrepreensível (min 00:28). Relativamente ao cliente, a cara já lhe guarda as costas, mas tem um aspecto que esbanja dignidade. Para já. 

Então,  Marante, ainda o rapaz não saiu de ao pé dele, exclama:
"Garçon! No bar/ Todo mundo é igual/ Meu caso é mais um, é banal/ Mas preste atenção, por favor"
Pois, agora é que isto piorou um bocadito para o lado do empregado de mesa. É que ele tem a casa cheia e não se vê mais ninguém por ali a ajudar. Há que despachar. Ainda por cima o Marante diz que o caso dele é banal, ou seja, não despertará grande curiosidade no empregado de mesa.  Mas pronto, pode ser que ele só queira pedir três pedritas de gelo para o whiskey. É perfeitamente banal as pessoas mudarem de ideias quanto à temperatura das suas bebidas. O empregado assente ao seu pedido, e fica de pé, em frente ao cliente, aguardando a questão que o Marante tem para abordar (min 00:46).
"Saiba que o meu grande amor/ Hoje vai-se casar..."
Por esta é que o garçon não esperava! O homem quer lamentar-se, daí ele ter falado ainda há pouco das centenas de casos de amor que os empregados de mesa escutam.

"Mandou uma carta/ Para me avisar/ E deixou em pedaços o meu coração..."
Diz Marante, enquanto saca de várias folhas dobradas do bolso e gesticula com indignação (min 00:57). Tem razão! Realmente, não se faz. Eu até costumo defender sempre as mulheres mas isto não é bonito. Casava e pronto! Agora andar a noticiar o acontecimento ao ex, que ainda para mais já é cinquentão, foi maldade.

"E para matar a tristeza/ Só a mesa de bar/ Quero tomar todas/ Vou-me embriagar..."
 Pois, normalmente os homens têm alguns comportamentos autodestrutivos quando estão com problemas amorosos. Nestas circunstâncias até é normal o Marante querer embriagar-se. Mas... E a paciência do garçon, que permanece ali em pé, de bandeja na mão, a ouvir a lamuria do cliente, sem sequer dar a desculpa básica de "estão ali a chamar-me, com licença, volto já"? Para mim já merecia o título de empregado do mês. 

"Se eu pegar no sono/ Me deite no chão..."
Lembram-se do aspecto que esbanjava dignidade de que vos falei há bocado? Lembram-se? Pronto, esqueçam. 
António Luís, António Luís... Isso assim não pode ser. Então? Beber um copo a mais, afogar as mágoas, tudo bem. Há muita gente que passa por isso. Agora, quando estiveres com sono vais para casa. Vai agora o empregado, coitado, deitar-te no chão do bar? Ainda por cima com a casa cheia? Que disparate! Tens sono, pagas a conta e vais para a cama. Amanhã é outro dia. Ou então ligas a um amigo para te vir buscar, caso não consigas conduzir ou a polícia esteja a fazer operação stop ali na rotunda.

"Garçon, eu sei/ Eu estou enchendo o saco..."
Prossegue Marante, tendo-me parecido que o empregado fez um ligeiro acenar com a cabeça no sentido afirmativo (min 1:32/1:33) ao que o nosso Marante responde com um gesto, pegando-lhe num braço e apontando para a cadeira à sua frente, convidando-o, assim, para se sentar. Sim. O empregado de mesa acabou de se sentar numa mesa do bar onde trabalha, com um cliente (min 1:37).

E enquanto o garçon se senta o Marante diz:
"Mas todo o bêbado fica chato/ Valente e tem toda a razão"
É assim, na minha modesta opinião, isto está a tomar proporções desnecessárias. O Marante está a querer desculpar a chatice com a bebedeira, o que até pode ser, mas nada justifica o facto do desgraçado do garçon ter de se sentar à mesa com ele. Depois ainda vem dizer que os bêbados ficam valentes e que têm toda a razão? Isto soa quase a ameaça velada. 

"Garçon/ Mas eu só quero chorar..."
Pronto, agora fiquei um pouco comovida. O homem está mesmo mal, quer desabafar e provavelmente os amigos já não estão para o aturar e ele virou-se para o empregado do bar.

"Eu vou minha conta pagar/ Por isso, eu lhe peço atenção..."
Mais uma vez, esta afirmação era completamente desnecessária. Ah e tal eu vou pagar, por isso tens de me dar atenção. Sim, Marante, mas a atenção de um garçon, num bar, resume-se a trazer-te bebidas para a mesa. Para desabafar é no psicólogo! O rapaz já foi um amor em ter-se alapado aí contigo à mesa, com o bar cheio de clientes. Olha se entra o patrão? Vê o seu empregado sentado à mesa com um cliente, bandeja ali pousada, com uma garrafa de JB e alguns copos.... Lindo cenário. Despedimento com justa causa, na hora.

"Saiba que o meu grande amor/ Hoje vai-se casar/ Mandou uma carta/ Para me avisar/ Deixou em pedaços/ O meu coração"
Outra coisa típica dos bêbados, para além de chatos e valentes, é mesmo a tendência para se repetirem. Já disseste isso, Marante. O rapaz já ouviu e não tem que te fazer.

Segue-se, depois, aproximadamente um minuto do mesmo lamento e o garçon ali permanece, sentado, impávido e sereno. Marante torna também a mencionar o facto de o deitarem no chão, caso ele pegue no sono. Parece-me que, a esta altura, a possibilidade começava a ganhar contornos reais. 

Foi uma noite complicada para o Marante, nem imagino no dia seguinte, aquela ressaca. Estou a vê-lo a acordar com uma monumental dor de cabeça e a pensar:
"Pá, eu disse ao garçon para ele se sentar na mesa comigo e ele sentou-se! Bebemos a garrafa de whiskey inteirinha... ou será que fui só eu? Passei a noite a dizer que a outra se ia casar, ainda chorei e tudo... que bronca! Já não tenho idade para isto. Nunca mais lá vou. Que vergonha". 

E foi assim que aquele bonito bar, com o garçon mais paciente do mundo, perdeu o Marante como cliente. É o que dá fazer as vontades todas aos clientes.



P.S.
Vi este teledisco, pela primeira vez,  alguns anos depois do seu lançamento, na RTP. Lembro-me de olhar para o Marante e pensar que um artista como ele, já na terceira idade, tinha muita coragem e até rasgos de ousadia em protagonizar, ele próprio, o clip. Podia ter contratado um actor para o efeito, mas não o fez. Hoje percebo que, afinal de contas, o Marante só tinha 50 anos. Não estava propriamente na terceira idade. Mas continuo a gabar-lhe a coragem.






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